21 gramas.

Mateus Braz
3 min readDec 9, 2019

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Secret Origins #10 (1987) Texto: Alan Moore Arte: Joe Orlando

E lá estava ele. O homem que não pude salvar. O homem que me salvou.

Lá estava ele, ou o que restava dele. Repousando enfim em uma caixa de madeira. Liberto de sua humanidade. Me obrigando à pensar no que acontece com tudo que tem aqui dentro quando morremos.

Ele era o tipo de pessoa que você percebia que havia muito mais lá dentro, mas era difícil de observar, impossível de se tocar o fundo. Como uma janela de tijolos de vidro, a luz era visível, mas as formas além permaneciam intocáveis. Eu sempre quis saber o que se passava em sua cabeça com maiores detalhes. Sempre imaginei que canção cantarolava seu proverbial coração.

Acho que nem ele sabia.

Talvez seja por isso que ele resolveu tentar embarcar clandestinamente num trem em movimento no meio da madrugada de uma quarta-feira.

“Em busca de aventuras.” ele dizia.

Não posso evitar de pensar no porquê dele fazer isso.

Idiota.

— Ontem à noite sonhei que você esquecia da minha existência.

— Bem, acho que um dia isso vai acontecer.

— O que?

— Nada dura pra sempre quando se tem 17 anos.

— As vezes você é sábio até demais…

Me pergunto quais terão sido suas últimas palavras. Ele adorava frases de efeito, mas nunca se lembrava delas por muito tempo.

Deve ter morrido tentando pensar em uma.

Certa vez ele me disse que sentia que desaparecia um pouco a cada aniversário.

Advogado ávido da ideia de que a percepção definia a existência, ele dizia que a cada ano menos pessoas percebiam quem ele realmente era. Cada vez mais distante de tudo, de todos, e arrisco dizer, de si mesmo.

— No fim o modo como nós percebemos os fatos é a realidade. Quer dizer, nós meio que estamos presos dentro de nossa mente né? Cada um tem sua realidade, acho que por isso é tão difícil se comunicar de verdade.

— Acho que não é tão difícil assim se comunicar quando se cria um vínculo profundo com alguém.

— E porque você acha isso?

— Não sei dizer…

— Talvez eu discorde de você, mas se é assim que você percebe as coisas…

— …

— …

— Ei… eu não…

— Tá tudo bem. Gostei de você…

Escritor prolífico de trechos inacabados. Nunca terminou um conto sequer. Um autor sem obras. Sempre dizia que não conseguia terminar suas histórias pois ele mesmo não havia vivido histórias suficientes. Se sentia preso, se sentia pouco.

Me pergunto o que houve com esses finais. Acho que morreu atrás deles.

Já fazia alguns anos que não ouvia falar dele. O tempo passou, e com isso sua profecia se realizou e ele se esqueceu de mim.

Me formei, me casei e aqui estou, ainda lembrando daquela noite. O momento em que ele me salvou, me fez parar de ter medo de quem sou.

Ali estava ele. Frio, pálido, morto, vazio. O homem que me salvou. Criatura complexa, intrigante, angustiada e frustrada. Ele estava morto. Morto antes de se tornar completo.

O primeiro homem que amei morreu.

E eu nem sei por que o amava.

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Mateus Braz
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