Anjos pagãos vazados de luz

Mateus Braz
2 min readJul 20, 2020

--

A primeira vez que ouvi “Tesouros da Juventude”, de Lulu Santos, foi no carro. Mudando rapidamente entre as estações de rádio reconheci de imediato a simples, porém agradável, voz do cantor. As músicas dele podem não ser muito complexas, mas agradam meu coração.

Ouvindo aquele fragmento de canção, a letra me chamou atenção.

Chegando em casa, a ouvi na íntegra.

Nuvens negras, tempestades no céu
Nós os piratas do sonho
Aventuras nesses sete mil oceanos
Negros gatos, gritos no casarão
Nós os heróis de brinquedo
Navegantes desses mares de ilusão

A primeira imagem que esses versos me evocaram foi a de aventuras de “capa e espada”. A música me parecia aludir aos mundos coloridos e frenéticos de Robin Hood, Capitão Blood, Zorro e Ivanhoé. Achei divertido, uma música pop que resgatava esses delírios escarlates da infância do meu pai. Segui ouvindo, pensando nos mares tumultuosos de Stevenson.

Perdidos no tempo
Achados no espaço
Senhores da terra
Deuses de aço
Mocidade independente
Soldados da força
De corpo fechado
São anjos pagãos
Vazados de luz
Feito santos de vitral

Nesse trecho pensei nos super-heróis. Nos mundos divinos onde homens e mulheres de trajes duvidosos distribuíam esperança. Pensei nos homens prateados de Jack Kirby, nos deuses de colant que a cada soco moviam não só matéria, mas ideias. Nos planetas sencientes e nas máquinas com coração humano. Pensei nos foguetes e minissaias de Alex Raymond, e em seus tiranos ensandecidos de futuros passados.

Fiquei surpreso. Esperava ver esse tipo de alusão num texto do Grant Morrison, não numa música de Lulu Santos.

Na estrofe seguinte tudo fez sentido.

E a voz desses meninos
Que morreram cedo
Se ouvirá como um silêncio iluminados
(Duane, Brians, Janis, Jimi, John)
Dream is over, novo sonho a se anunciar

Lulu não cantava sobre os heróis da infância de meu pai, ou sobre os mascarados que tomavam tanto espaço na minha mente. Ele cantava sobre os heróis de sua própria juventude.

Eu estava acostumado a justapor super-heróis e mitos. Não me é estranho comparar Superman com Atlas e Cristo. Lulu fez a mesma coisa com seus próprios heróis. Se quando ele era moço, Janis Joplin o ajudou a formar seu gosto musical (que culminou na sua obra e sucesso) eu lia gibizinhos, que também formaram minha visão de mundo. Enquanto meus amigos, em sua adolescência, ouviam My Chemical Romance, e encontravam nas palavras de Gerard Way algum acalento num mundo tão hostil; eu via Superman abraçar uma adolescente suicida, me fazendo pensar um pouco menos em me matar.

No fim Lulu Santos falava mesmo sobre o que eu pensava. Todos temos ttesouros intocáveis diferentes que nos ajudam a sobreviver. Cada um tem seu vitral no topo do calabouço, que permite que um pouco de luz possa romper a escuridão.

All Star Superman — Grant Morrison e Frank Quitely

--

--

Mateus Braz
Mateus Braz

No responses yet