Apóstata
Ele já não sentia dores. Ao caminhar pela praça ensolarada sua mente sentia um frio aconchegante. Dois anos antes seu conjunto de crenças ruíra e desde então ele apenas caminhava. Ele sentia o atrito de cada articulação, o abrir e fechar de cada poro, o tilintar de cada glândula.
Mas isso é agora. Antes ele era normal. Pagava o preço como nós, trabalhava das 6 as 5. Tinha casa, carro e uma esposa diligente. Mas nada demais.
Certo dia saiu do escritório como de costume, parou pra comprar um salgado como de costume. Ouviu um rugir de metal retorcido, acompanhado do gorjear de pássaros já extintos. Do canto do olho viu toalhas de cozinha bordadas caírem ao chão. Um cubo d’água flutuou na frente de seus olhos, como um bebê pato segue sua mãe. Virou-se. No fim da larga avenida, um colossal prédio de arquitetura brutalista se deslocava na velocidade de uma menininha aprendendo a patinar com patins inline da Xuxa®.
— Quem é você?
— Tudo que já existiu, que existe, e que virá a existir.
— Então você é Deus?
— Mais ou menos isso.
— Então você existe mesmo?
— Mais ou menos.
— Você é capaz de dar respostas precisas?
— Talvez.
— Por que você apareceu aqui? Agora? E por que pra mim?
— Queria comer um salgado.
— Você come?
— Então… é meio complicado.
— Eu tenho tempo. Manda lá.
— Eu não posso fazer nada, pois sou tudo.
— Interessante.
— Como sou tudo, acabo sendo Deus também, então de certa formo acabo me encaixando na visão de Deus das religiões. Você teve uma criação católica não é?
— Faz muito tempo…
— Então, se você me aceitar no seu coração, como o Deus cristão, eu posso comer o salgado, pois vou estar transubstanciado na sua carne, alma e espirito. Ser e não-ser, em uníssono.
— Mas você já não é tudo?
— Mais ou menos.
— De novo isso.
— Calma.
— Tá.
— Sua mente limitada a três dimensões não poderia sequer sonhar em conceber a qualidade realmente real da realidade. A existência é várias. Eu sou um nível de existência. Mais ou menos isso.
— Mais mais ou mais menos?
— Mais mais.
— Hmmmm.
— Então, posso comer o salgado?
— Calma.
— Calma o que porra?
— Então se eu tenho a noção cristã de Deus você se encaixa nela?
— Tipo isso.
— Então o céu existe?
— Velho… se eu te falar que não me deixam entrar lá…
— Na moral?
— Sim… longa história… nem sei como tá a situação lá. Quando você morrer, se você entrar lá, você me conta.
— Então existe vida após a morte?
— Vida é uma palavra muito forte… existe existência.
— Aqueles papos de energia? Vou viver nas minhocas que comerem meu cadáver uma ova!
— Calma.
— Tá.
— Mas e aí… vai me aceitar no seu coração ou não?
— Você quer muito comer um salgado né?
— Sim…
— Mas você também é o salgado né?
— Isso.
— Mas você precisa do meu corpo pra conseguir comer por que você não pode comer a si mesmo?
— Quase isso. Preciso da sua existência em vários níveis, pra poder experienciar isso.
— Doideira.
— Nah, depois de um tempo acostuma.
— Mas pera. Você precisa do meu sim?
— Sim.
— Então eu sou mais forte que deus?
— Ei! Por favor capitalize o “D”!
— Inacreditável, deus está sob meus desígnios por causa de um salgado.
— Só um pedacinho…
— Não! Viva eternamente a sua anti-vida! A sua prisão divina! Você está preso na condição de deus e eu posso comer este croissant de chocolate saboreando cada partícula!
— Peraí, é de chocolate?!
— Sim…?
O gigantesco edifício foi em sua direção. Sua visão limitada a um mar de cinza. A cada segundo 1/2 mm mais perto. Irresistível.
Tudo se fez trevas. O silêncio devorava as palavras uma a uma. Nada existia além do nada. Não se via o verbo em parte alguma.
Aos poucos surgiu o concreto armado. O resto veio depois. Hoje em dia ele anda por aí falando que viu Deus. Com D maiúsculo.
Já não come mais salgados.