Mar Icário

Mateus Braz
3 min readJan 27, 2019

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Caixa Rápido

No máximo 15 itens

Hmmm arroz ok carne ok saco de lixo ok esponjas ok pasta de dente ok desod…

Esqueci o desodorante.

Era um começo de verão quente e isso já se refletia no humor das pessoas. O supermercado SP havia se tornado um forno lotado e, como sempre, eu pontualmente me esquecia de ir às compras em horário mais oportuno. Dezenas de pessoas pedindo licença com um mero “ss ss”. A sorte havia me presenteado com um bom lugar na fila em um breve momento de tranquilidade, mas como de praxe nesse tipo de situação eu tinha esquecido de pegar algo.

Navegando por entre os corredores senti o calor conquistar sua primeira vitória na guerra contra a homeostase do meu corpo. Uma breve fraqueza, uma coceira, um desconforto irreversível. Já passava das seis da tarde e meu café da manhã ainda residia na cesta de mercado em minha mão.

Corredor 1: Frios e lácteos

Corredor 2: Bebidas

Corredor 3: Doces

Corredor 4: Perecíveis

Corredor 5: Conservas

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Corredor 7: Higiene pessoal

Uma prateleira cheia de frascos com aromas dos mais ignoráveis aos mais hediondos. Pego um frasco do desodorante sem perfume, sem álcool e, espero que, sem câncer. Ao retornar a fila triplicou de tamanho e nos outros caixas a situação não parece muito melhor. Em um deles a fila fazia curva em um dos corredores. Aparentemente uma senhora arranjou encrenca com o caixa e atrasava o dia de várias outras pessoas. Com uma curiosidade quase mórbida me aproximo do caixa para observar a situação. Como se esperava a mulher possuía as características visuais de uma pessoa que “quer falar com o gerente”. Esboço uma contração facial que poderia ser confundida com um sorriso tímido e dou as costas em busca de uma solução para a falta de mantimentos de minha casa. No entanto algo puxa meu olhar de volta ao caixa. Um homem na casa dos… 30? Não era bom em identificar esse tipo de coisa, mas algo em suas feições me parecia familiar, não saberia dizer o que, mas simplesmente não conseguia desviar o olhar. Um amigo de escola? Não, a idade não batia. Um professor? Bem, uma mudança de carreira dessas parecia improvável. Quem seria então?

O calor já se tornara insuportável e um copo d’água começava a se tornar imprescindível. Meu corpo implorava para ir para casa então entrei em uma fila. A mais longa. A fila com um resto lembrança perdido passando códigos de barra sob uma luz vermelha. Não fazia sentido me submeter mais tempo do que o necessário àquela situação, mas por alguma pequena e cotidiana loucura eu não podia me afastar daquele mistério. Quem era aquele homem?

Me inclinava para os lados da fila tentando vislumbrá-lo. Seu rosto me parecia extremamente familiar e amigável, como se fosse um velho amigo. Por que o esquecera então? Parecia distante e próximo. Como uma flor através da janela. Como uma pessoa que você cruza todo dia no caminho para o trabalho sem nunca trocar uma palavra e quase esquece que é um completo estranho.

Vagarosamente a fila andava, passos breves intercalados por um empurrão na cesta de mercado. O calor insuportável ocupava cada vez menos espaço em meus pensamentos perante a urgência da questão presente. Dezenas possibilidades de situações passavam pela minha cabeça, mas nenhuma delas se encaixava com o homem do caixa. Seu rosto me trazia simultaneamente uma importância e uma distância que simplesmente não fazia sentido. Não podia ser “um qualquer”, ele tinha sido importante, mas ao mesmo tempo, se fosse esse o caso, não conseguiria me lembrar de algum momento? Alguma conversa ou qualquer interação? Mas nada me ocorria.

Conforme me aproximava do caixa minha incapacidade de solucionar o enigma começava a me irritar profundamente. Resolvo pensar em outra coisa, saco o celular e busco algo para me distrair. No fundo do bolso encontro um fone de ouvido. Completamente emaranhado. Tudo bem, eu tenho tempo.

Após desatar o “nó górdio” e ouvir algumas canções a fila torna a andar e minha vez finalmente chegou.

Tiro os fones

“Boa tarde”

“Boa tarde…”

Novamente meus olhos se fixam em seu rosto.

Quem era ele?

“Crédito ou débito?”

“Crédito.”

Essa voz…

“O sistema está um pouco demorado hoje.”

“Tudo bem.”

Enquanto aguardávamos a máquina processar a operação ele começa a tamborilar os dedos sobre a mesa.

Esse ritmo…

De súbito me recordo de uma velha canção, uma de muitos anos atrás, uma canção que me lembrava os primeiros momentos de minha juventude. Uma banda de rock boba que sumiu tão rápido quanto aqueles dias. Me pergunto por onde eles andam hoje em dia.

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Mateus Braz
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