O comando dos desfigurados

Mateus Braz
9 min readApr 21, 2020

Encontrei esse estranho grupo de indivíduos por acaso. Minhas viagens ao País de Gales estavam se tornando menos frequentes, conforme meus antigos amigos partiam. Naquele ano Jones havia me convidado para passar uns dias em sua casa, perto de Highhill.

Não sou um homem supersticioso ou facilmente impressionável, tampouco uma espécie de fetichista militar, mas o que se sucedeu naquele ano foi igualmente surreal e bélico.

No dia de minha chegada, um céu alaranjado me deu as boas-vindas, sendo seguido de uma noite escura e densa. O céu noturno daquela região do país é geralmente cravejado de estrelas de diversos quilates, mas naquela noite específica nuvens negras com um tom que puxava levemente para o azul cobalto, cobriam a tapeçaria celestial. Não se podia ver um palmo na frente de seu nariz, e as estradas antigas não ajudavam a encontrar o canto do mundo onde Jones vivia agora.

Na ocasião estava acompanhado de Marco, outro amigo nosso dos tempos do departamento de história da UFRGS. Dizem para os alunos que a internacionalização é o futuro do ensino superior, claro que isso não passa de uma mentira conveniente para lhes manter o espírito faminto e ardente. Pra mim a internacionalização era o passado, e o passado nos fascinava.

Depois do GPS nos fazer entrar em 5 tipos diferentes de becos sem saída finalmente chegamos na cidadezinha de Llangwntffrwd. Lá uma nova odisseia se apresentava, mas após questionar 5 pessoas diferentes sobre a residência dos Jones, finalmente encontramos sua luxuosa casa. Afastada do (se é que podemos chamá-lo assim) centro da cidade, ficava ao pé de um pequeno morro, o único da região. O casarão antigo abrigava, em suas salas e corredores, fragmentos da história de todo mundo. Desde a madeira dos rodapés até as mesas e torneiras, tudo cheirava a passado. Jones era notório no departamento por sua obsessão por conflitos militares, suas pesquisas sempre circundavam esse tema, advogando que a guerra é característica definidora do homo sapiens. Nós obviamente não concordávamos com ele, mas sua aptidão para a pesquisa era inegável. Sua obstinação o levou a viajar o mundo, aprender uma dúzia ou mais de idiomas, sempre atrás de relíquias, histórias locais passadas de geração em geração, fragmentos de momentos. Obcecado por preservar cada segundo da humanidade nesse planeta, especialmente os que envolviam diminuir o número de humanos nesse planeta.

As paredes do casarão entregavam a afeição de Jones pelo belicoso. Mapas antigos nos delatavam secretíssimos planos de ataque, e armas recém polidas nos faziam pensar em quantas almas aquele objeto apagou da existência. Medalhas refletiam a fraca iluminação da sala de jantar.

— Finalmente vocês chegaram! Quanto tempo!

— Infelizmente o tempo não dá trégua… Só para chegar aqui já tivemos que nos digladiar com o relógio.

— Mas só o agora importa! Venham, vamos comer, vocês devem estar morrendo de fome.

O funcionário de Jones nos serviu uma farta ave, que eu não saberia nomear e sequer ousei inquirir sobre sua procedência. Só esperava que ela não fosse histórica também. A culinária da região tinha um aroma peculiar com o qual nunca consegui me acostumar, não era ruim, mas sempre me causava uma certa estranheza.

— Na última vez que você veio me disse que todas as vezes que comia da culinária local no jantar acabava tendo sonhos estranhos a noite toda. Espero que dessa vez a comida lhe agrade…

— Eu não estava tentando reclamar da comida Jones! Eu é que tenho essa mania de procurar causas para os meus sonhos estranhos.

— Tudo bem. Eu também ando sonhando cada vez mais. Principalmente coisas relacionadas ao trabalho.

— Ainda persiste naquela busca por registros de destacamentos militares que se perderam?

— Sim, curiosamente anda rendendo bons frutos, quem sabe acabe saindo um livro contando as curiosidades que descobri.

— Por isso gosto tanto do seu trabalho, geralmente a história se ocupa dos soldados mais competentes, não dos menos…

— O incomum sempre nos fascina não é mesmo? Seja por demasiados vícios ou demasiadas virtudes.

— De fato.

Durante aquele agradável jantar, Jones nos relatou diversas histórias curiosas que descobriu em suas pesquisas, como o caso do pelotão romano que deveria conter revoltas nas fronteiras orientais do império e acabou chegando na China acidentalmente. Ou a história do soldado britânico que, ao desembarcar na Normandia no dia D ficou para trás depois de torcer o tornozelo no meio do caminho, e acabou constituindo família num vilarejo da região. Relatou o caso famoso do jovem revolucionário que por equívoco se alistou do lado errado. Comentou também sobre o soldado japonês na segunda guerra que, após a invasão americana em Guam, ficou 28 anos escondido, acreditando que a guerra continuava. Jones tinha coletado relatos e evidências materiais dessas peculiares histórias, por enquanto eles serviam de decoração para sua casa, já que não conseguiu achar algum museu interessado em coisas tão aparentemente triviais. Claro que para ele era um prazer rechear sua casa com coisas mais velhas que ele mesmo. Acho que de certa forma nos causa certa sensação de superioridade, uma visão privilegiada ao olhar para trás. Estudar história inevitavelmente acaba sendo ver o passado com a lente do presente, ou seja, ver o passado com a lente errada, mas é a que temos.

Durante o jantar Marco comentou com sua charmosa prepotência de sempre que abominava assuntos militares, e que talvez a história fosse melhor se apagássemos os conflitos dela. Eu e Jones o questionamos de forma educada, em respeito a nossa longa amizade. Jones e eu acreditávamos que os nossos erros deveriam ser sempre lembrados, para que não os repetíssemos.

— E isso funcionou até agora? — disse Marco em tom de brincadeira.

Conforme as pintas de cerveja passavam as discussões perdiam o rigor científico e as risadas abundavam.

Marco era um dos maiores pesquisadores sobre a história das comunicações no Brasil, suas extensas obras detalhavam nos mínimos detalhes todo o caminho que a primeira prensa do Brasil percorreu para chegar até aqui. Nossas discordâncias sobre nosso campo de estudo serviam apenas para estimular que mantivéssemos contato constante.

Após lutar contra meu paladar para conseguir saborear o jantar, Jones sugeriu que fossemos descansar, afinal nossa viagem tinha sido longa. Tiramos no palitinho e Marco ficou com o quarto que pegava sol pela manhã, eu fiquei com o que sobrou, ambos no andar mais alto da casa.

Ao me deitar fiquei pensando no porquê da culinária gaélica me causar uma impressão tão forte e tão neutra. Minha mente percorreu novamente toda a nossa jornada dos últimos dias pelos rincões mais secretos do País de Gales. Pensei também na guerra, nunca tive que viver uma, mas parece uma experiência extremamente traumática. Um tipo único de sofrimento.

Acordei no meio da noite com uma certa dor de barriga. Fui ao banheiro obedecer aos comandos biológicos e, ao retornar ao quarto, ouvi barulhos de passos vindo do lado de fora da casa. Eram ritmados como o marchar de uma tropa, mas lentos como se o cansaço já fosse insuportável. Tentei olhar pela janela e só vi breu. Quando me preparava para voltar à cama ouvi sussurros estranhos, mas ritmados. Fechei a janela. Consegui dormir depois de uns 15 minutos.

No dia seguinte perguntei para Jones se havia algum quartel na região, ele respondeu que faz décadas que a cidade não vê um soldado. Perguntei se havia algum tipo de grupo que andava de noite pelo local, mas ele me garantiu que não.

— Deve ter sido um sonho então…

— Foi a comida, não é?

— Começo a pensar que talvez eu seja muito sugestionável…

— Tenho certeza de que sim — disse ele rindo enquanto comia seu café da manhã.

Naquela tarde Jones nos levou em um tour pelo seu museu particular. Admito que o uniforme de alta patente japonês da segunda guerra pendurado na biblioteca me surpreendeu, quase tanto quanto o fuzil soviético exibido na parede do banheiro.

Passamos o dia discutindo nossas pesquisas recentes, Jones e Marco gostaram particularmente de me dar sugestões para minha pesquisa sobre os motivos por trás das formações dos estados modernos. Ambos tinham opiniões muito fortes a respeito. Ouvi tudo com paciência e, não nego, levei muita coisa em consideração.

Mais tarde passeamos pelas pitorescas paisagens de Llangwntffrwd. Todas as casas tinham um estilo antigo e, às vezes até as roupas, pareciam ter saído de algum momento dos anos 50. A natureza era bonita e quase intocada, e a colina, que os nativos insistiam em chamar de montanha, parecia a ruína de uma antiga torre, que um dia tocou os céus.

— A vida parece muito tranquila aqui. — disse Marco

— Não posso reclamar, a paz e o silêncio auxiliam meu trabalho, e como já estou ficando velho e não viajo mais tanto, acaba não sendo tão ruim ficar longe de um aeroporto.

— Realmente muita paz e silêncio… Como você aguenta? — respondeu Marco em tom de brincadeira. Todos rimos. Aquela visita ao País de Gales prometia ser um retiro espiritual, nunca havia me sentido tão longe de tudo, e tão perto de meus amigos. Llangwntffrwd era como um sonho.

Depois de explorarmos toda a cidadezinha e desbravarmos o pequeno sebo/antiquário local decidimos retornar para a residência de Jones e matar o tempo jogando cartas. Reconheço que nuca entendi muito bem as regras do pôquer, mas sempre me divertia brincando com a sorte, e acabei ganhando uma partida naquela noite. A tenebrosa escuridão do céu persistia e, por volta da meia-noite, decidimos ir pra cama.

De noite, num horário que não consigo identificar, acordei com o som dos passos. Curioso com essa ocorrência repetida, calcei os chinelos e resolvi investigar por conta própria. Desci as barulhentas escadas com cuidado para não acordar ninguém. Lá embaixo, saí devagar pela porta da frente, que permanecia destrancada, devido à baixíssima taxa de crimes do local. Ao sair da casa comecei a ouvir novamente os sussurros de ontem. Decidi seguir o som. O céu parecia ainda mais escuro do que na noite anterior e a única coisa que interrompia o negro das nuvens eram leves tons de azul escuro, que tornavam o céu ainda mais horripilante. Ao caminhar para longe da casa comecei a me aproximar da colina (quer dizer, montanha…), os sons pareciam vir do outro lado dela. Comece a circundá-la devagar, não havia pressa. O vento frio balançava meu roupão, mas por sorte eu havia me agasalhado antes de sair. Conforme eu seguia a circunferência da colina os sons aumentavam. Até que notei que já estava no lado oposto dela. De repente os sons aumentaram e percebi que vinham do topo da colina. Resolvi subi-la. Uma atração sem controle me movia, me comandava. Neste instante me arrependi amargamente de ter vindo de chinelos. Quando já chegava quase no cume os sons ficavam mais claros, e mais embaralhados. Ao longe vi um grupo de pessoas, cantando em uníssono a mesma canção, que me era ao mesmo tempo estranha e familiar. Suas vozes pareciam entoar a música em diversos idiomas, reconheci alguns, mas eram muitos mais os que me pareciam completamente estranhos. Me aproximei devagar, a cada passo temia que notassem minha presença, mas precisava vê-los mais de perto. Não pareciam notar a luz de minha lanterna.

Quando finalmente cheguei perto, me deparei com um pelotão de soldados. Centenas de homens, fantasmagóricos em aparência, trajando farrapos. Seus rostos permaneciam ocultos pelas trevas. Reconheci uniformes militares de diversos países e diversas épocas, alguns empunhavam armas, outros não. Alguns trajavam uniformes, outros não. Todos pareciam marchar em direção a algo específico.

Ao me aproximar ainda mais, consegui vislumbrar seus rostos. Eram rostos queimados, perfurados, dilacerados. Eram homens sem braços, sem pernas, como que saídos de um hospital de guerra, ou de algum círculo do inferno. Em pânico, tentei sair em disparada, mas tropecei em meus próprios chinelos.

Então eles me viram. Começaram a bradar gritos de guerra em mil línguas, mancando rapidamente em minha direção.

Eram gritos de guerra misturados a gemidos de dor e sofrimento, acompanhados de um insuportavelmente constante ranger de dentes. Pareceu-me que havia choro convulso, como de criança, em meio a uma tormenta de lamúrias e de arrependimentos. Imagens frenéticas me acometiam à mente, como que em um encantamento hipnótico. Medo e delírio eram uma coisa só. A dor se fazia carne.

Vi clarões de tiros e granadas, mas não se ouvia estampido. Me levantei e saí correndo descalço. Nunca em minha vida senti tanto medo, nunca havia sentido que minha existência estava em risco, até aquele momento. Corri desesperadamente, sem olhar pra trás, com a noção de que ali, eu não passava de uma presa. Quando finalmente cheguei à base da colina, os gritos cessaram, e os soldados pareciam voltar para seu transe.

Meus pés doíam e fiz o resto do caminho vagarosamente. Conforme me aproximava da casa, tudo que eu vira lá em cima parecia ficar mais nublado em minha memória.

Na manhã seguinte, despertei cansado e encharcado de suor. Ao sentir o cheiro da comida gaélica procurei meus chinelos, mas não os achei. Desci as escadas até a a sala onde os empregados do anfitrião serviam o curioso café da manhã. À mesa, Jones e Marco mais uma vez discutiam sobre a guerra, Jones aclamava a bravura dos soldados e a honradez de lutar por sua pátria, já Marco bradava que a pátria é uma grande ilusão e não serve pra nada além de escravizar os homens.

Ainda tentando me recordar do que sucedera na madrugada, uma frase de uma peça de Guillermo Calderón me veio à mente.

— A guerra não é como vocês pensam…

Se calaram.

O café da manhã parecia assustadoramente saboroso.

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