Prosopagnosia
No caminho até a caverna, todas as luzes ao meu redor assumiam a forma disforme das estrelas que eu desenhava na minha infância. Eu achava que minha vista era perfeita. Quando minha visão se turvou? Na nossa religião, morrer é pecado. Não lembro de nada que o médico disse, saindo de sua sala, tudo parecia acelerado. Conforme os anos passam, cada ano se torna uma fração menor da sua vida. Nunca pensei muito nisso, mas sentia que as luas pareciam girar cada vez mais rápido. A adaga na minha mão tinha um peso agradável. A luz das luas refletidas nela parecia distorcida, como um feixe se movendo em alta velocidade. Será que eu deveria ter usado óculos? Não importa mais. Lembro de abraçar minha mãe, seus olhos brilhavam com o início ou fim de lágrimas, que sempre são mais memoráveis do que as lágrimas em si. Meu pai pôs a mão no meu ombro. Ele já sabia. Minha irmã sorriu desconfortável, disse algo vagamente religioso. Nunca consegui acreditar muito bem, mas também não desacreditava a ponto de ter aversão. Só não parecia ter a ver comigo. Deus era um rosto distante, sem forma, escondido por detrás de nossa terceira lua. Pelo menos é o que os sacerdotes pregavam. Quando cheguei na caverna, depois de um dia de caminhada pela calmaria do deserto, me encostei no arco que a entrada descrevia. Parecia um desenho. Não parecia uma caverna de verdade, mas a ideia de uma caverna. Uma pedra cutucava o lado esquerdo da minha espinha dorsal. Desconfortável, mas não o suficiente para eu me mexer. Meu corpo parecia pesado, como se tudo que eu já vivi subitamente cobrasse seu preço mas perdesse a forma. Tentei me lembrar. De qualquer coisa. Só lembrar. Mas, quanto mais tentava, mais percebia que minha memória era esburacada. Nossos antepassados chegaram neste planeta 700 anos atrás. Chegaram em grandes foguetes, foguetes gigantescos abandonados no deserto. Se tornaram destino de peregrinação. Uma chuva de asteroides se aproximava. Os cientistas calmamente calcularam, projetaram, construíram. Era isso que nos ensinavam na escola. As três luas eram símbolo das três diásporas realizadas por nosso povo. Segundo os sacerdotes, este planeta era nosso destino final, onde Deus viria nos encontrar. Nunca entendi muito bem. Mas isso era o passado, um que eu nunca vi, nem nunca me importei. Minha irmã não comia vegetais. Minha mãe às vezes fingia estar com dor de cabeça para não ir ao culto. Meu pai era sacerdote. Me dou conta que estou conjugando os verbos no passado. Parece apropriado. Em breve, tudo isso cessará, também, de me importar. Na nossa religião, morrer é pecado. “Como você é fatalista…” Ela me disse uma vez. O nome dela ecoou em meus lábios. Lembro da sensação de seu beijo quando me mudei de minha cidade natal. As tempestades de areia estavam se intensificando na região e todos foram evacuados. Primeiro o clero, depois os líderes, e assim por diante. A cidade hoje está soterrada. Eu prometi que nos reencontraríamos aqui. O tempo passou, e a nave dela nunca chegou. O tempo passou, e isso parou de me importar. Tento lembrar de seu rosto. Um feixe de luz rasga a tela de minha mente. Seu cabelo era marrom, sua pele áspera. Tento lembrar de sua voz, mas a voz da enfermeira me vem à cabeça. Lembro como sua voz mudou antes e depois da consulta, mas não me importei de prestar atenção a seu rosto.
O caminho até a caverna era lindo, as areias rosadas do deserto refletiam suavemente a luz das luas. O grande rio corria ao meu lado e o silêncio cobria meu cérebro em um véu de calmaria. Mas isso foram os primeiros vinte minutos. Depois, comecei a ficar impaciente, queria chegar logo na caverna, terminar isso de uma vez. Eu deveria ter usado óculos. Os rostos em minha memória pareciam todos irreais, inventados. Uma mentira que eu contava para mim mesmo para me convencer de que havia qualquer coisa além do meu olhar. Senti vontade de chorar, mas não queria que minha visão ficasse mais turva. Encostado na entrada da caverna, minha visão era bipartida. De um lado, a rocha escura, do outro, o roxo azulado de um céu que logo eu nunca mais veria. Olhei para o cabo da adaga. Era adornado com entalhes minuciosos, tentei aproximar do meu rosto para ver melhor, mas eram pequenos demais. Eu não conseguia enxergar. Me arrependi de ter pressa, não deveria ter olhado para o chão a maior parte do caminho até aqui, deveria ter apreciado a vista. A vista era diferente da minha cidade natal. Lá o deserto era escuro, rico em ferro. O cansaço começa a abrandar. Finalmente o desconforto da rocha fez com que eu me mexesse. Deitei no chão. A tradição demandava que o ritual fosse realizado dentro de uma caverna. Deitei de modo que minha cabeça ficasse para fora da entrada, mas meu corpo ficasse dentro. Pressionei a lâmina contra a lateral do meu pescoço. Olhei para as luas uma última vez. Percebi que, curiosamente, as luas eram a única fonte de luz que não se distorcia sob minha visão. Via com nitidez suas crateras, suas montanhas e seus oceanos. Quando era criança, lembro de me deitar no chão com meu pai enquanto ele me ensinava a diferença de cada uma. A primeira era pequena, como era nosso povo quando saiu do primeiro planeta. A segunda era montanhosa, como as árduas estações pelas quais meu povo passou no segundo planeta. A terceira era a mais bela, com um tom perolado, como a vida que encontramos no terceiro planeta. Estranho, agora todas pareciam iguais. Não consegui lembrar do rosto dela.