Sobre o Rigor na Ficção

Mateus Braz
6 min readJul 16, 2019

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Parece-me que em tempos recentes há uma necessidade cruel e doentia de arrastar a ficção para o lodo da realidade. O público que vai ao cinema reclama que a viagem no tempo realizada pelos personagens não faz sentido lógico, sem perceber que viagem no tempo efetivamente não existe. Mais e mais me parece que o público num geral, tanto transeuntes desavisados quanto estetas estudados, não estão verdadeiramente abertos para receber arte, seja ela “erudita” ou “massificada”. Por isso nos parece cada vez mais que a arte não possui mais efeito ou que “não se entende” ou “não se aprecia” ou qualquer frase repetida em cineclubes e galerias por aí. O consumidor (deus que me perdoe por usar esta palavra para falar de arte) quer magia, mas uma magia que caiba em seus bolsos, qualquer coisa além disso o amedronta. Perdeu-se um contato com o sublime, uma vontade de se banhar no desconhecido. Todos querem medir a ficção com a régua da realidade, e isso não faz o menor sentido. Produtores de conteúdo internetesco sentem-se inteligentes por apontar “furos de roteiro” em situações fantásticas, sem perceber que não há nada de inteligente em apontar que uma obra de ficção é fictícia, até uma criança sabe disso. Como Grant Morrison muito bem disse em seu livro Superdeuses:

Os adultos, por outro lado, debatem-se desesperados com a ficção, sempre exigindo que ela se conforme às normas da vida cotidiana. Adultos exigem, ridiculamente, saber como o Superman poderia voar, ou como o Batman pode cuidar de um império dos negócios multibilionário de dia e enfrentar o crime à noite, quando a resposta é óbvia até para uma criancinha: porque não é de verdade.

Homens não voam, e uma história sore um homem voador não é sobre o voar em si. Dificilmente uma história se limita a tratar exclusivamente do impossível, apenas o utiliza como motivo para falar de outra coisa. A história sobre viagem no tempo, destrinchada pelo “crítico” de blog, efetivamente não é sobre viajar o cronos, isso é apena um leitmotif, um tema, para falar de qualquer outra coisa. Uma história sobre o passado ou o futuro dificilmente é sobre algo além do tempo em que o autor vive. Vivemos em tempos povoados por personagens borgeanos que insistem em cartografar o mapa mais perfeito da realidade, sem perceber que algo idêntico a realidade é muito pouco útil.

…Naquele império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do Império uma Província inteira. Com o tempo, estes Mapas Desmedidos não bastaram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos Dedicadas ao Estudo da Cartografia, as gerações seguintes decidiram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade entregaram-no às Inclemências do sol e dos Invernos. (…) Jorge Luís Borges, “Sobre o Rigor na Ciência”

Certa vez testemunhei uma cena que acho que ajuda a ilustrar meu ponto. Um homem, ao comentar a obra Frankenstein de Mary Shelley, reclamou que a autora não explicitava como foi exatamente o processo utilizado pelo Dr. Frankenstein para trazer a criatura à vida. O homem alegava que se a autora tivesse utilizado a ferramenta narrativa de dizer que foi um processo mágico não haveria problemas, mas como era um processo científico, deveria estar de alguma forma explicado no texto. Não quero me alongar demais aqui, mas é evidente que Frankenstein ou o Prometeu Moderno não é uma obra apenas sobre o ato científico “criar vida” e sim sobre a própria natureza humana. Todavia, para este homem, o mais importante era uma absurda coesão científica, e não o que o livro diz em si. Todos os temas abordados por Shelley, que apenas utiliza o horror e a ficção científica como símbolos para dizer algo mais profundo, passaram despercebidos por ele.

Ressalto aqui que não prego sobre a arte em si, mas sobre como fechamos nossos espíritos para a comunicação sublime das múltiplas poéticas. Muito se discute sobre a capacidade de um autor de provocar a “suspensão da descrença” no seu leitor/espectador, mas há um erro de foco generalizado. Muito do que se produz hoje, e o público principalmente, está obcecado com uma verossimilhança absurda. Busca-se construir realidades mais reais do que a nossa, como os mapas de Borges. Tolkien disse que uma obra de ficção precisa possuir uma “consistência interna” para que o leitor possa crer em leões falantes ou coisa que o valha. Em suma, o autor deve estabelecer regras para aquilo que escreve, deve impor amarras fisiológicas e físicas para um leão falante. Percebe o absurdo disso? A tão falada “ suspensão da descrença” não surge por estabelecer ciências ficcionais perfeitamente lógicas, a crença do leitor vem do espírito. A vontade de mergulhar em uma história fantástica parte do leitor, que abre seu espírito para se comunicar com aquela obra, abre sua natureza humana, para através de símbolos harmonicamente caóticos, comungar com o autor. Dessa comunhão surge algo novo, seja desprezo ou deleite, mas surge, e esse algo novo é a razão da arte, uma síntese entre o dito e o entendido, entre autor e leitor. Não lemos um livro para saber porque um leão fala, lemos para comungar com algo além das palavras, e isso é inseparável da arte. Arte não é um livro de biologia.

Como diz Antonin Artaud em seu texto Teatro Ocidental e Teatro Oriental:

“Todo verdadeiro sentimento é na verdade intraduzível. Expressá-lo é traí-lo. Mas traduzi-lo é dissimulá-lo. A expressão verdadeira esconde o que ela manifesta. Opõe o espírito ao vazio real da natureza, criando por reação uma espécie de cheia no pensamento. Ou, se preferirem, em relação à manifestação-ilusão da natureza ela cria um vazio no pensamento. Todo sentimento forte provoca em nós a ideia do vazio. E a linguagem clara que impede esse vazio impede também que a poesia apareça no pensamento. É por isso que uma imagem, uma alegoria, uma figura que mascare o que gostaria de revelar têm mais significação para o espírito do que as clarezas proporcionadas pelas análises da palavra.

Assim, a verdadeira beleza nunca nos impressiona diretamente. E um pôr-do-sol é belo por tudo aquilo que nos faz perder.”

A arte é por definição símbolo, não matéria. Contudo devo dizer que sou contra postulações sobre como a arte “deve ser”, defendo que todo tipo de expressão deve existir, apenas digo que não nos fechemos em apenas um tipo de expressão. Não tiro os méritos de Tolkien de criar mundos intrincados e cativantes, mas nem toda arte precisa ser como a de Tolkien. Não criemos amarras para a arte. Busquemos a libertação do espírito. Deixemos réguas de lado, meçamos a arte apenas com o que ela causa dentro de nós. Advogo por uma certa “humildade” no ato comunicativo, uma concentração maior no que se diz do que no que esperamos que seja dito. Citando novamente Artaud em seu texto Acabar com as Obras Primas:

Foi porque se empenharam em fazer viver, em cena, seres plausíveis mas desligados, com o espetáculo de um lado e o público do outro — foi por se mostrar à massa apenas o espelho daquilo que ela é.

Nas palavras de Artaud, não façamos arte apenas empirista, que nada mais é do que um espelho do público. Soltemos as âncoras desses tempos que exigem lógicas e mecânicas, deixemo-nos voar. Quem sabe assim a arte volte a nos mover, como nos movia séculos atrás, quando os mitos dispensavam explicações.

Mas por algum motivo o sexo dos elfos ainda é assunto popular.

Arte de Benjamin Dewey

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